Tempo de renascer


Maio, maduro Maio


Maio é um mês de esplendor: tem uma saia de searas verdes e enfeita-se com colares de papoilas e malmequeres. Maio é o mês em que nada nem ninguém consegue pôr-me triste. É um mês de desatino. Desatino é uma palavra que, certamente, nunca ouviste ou, se ouviste, não entendeste, mas pertence ao Maio da minha terra alentejana. Dela fazem parte as abelhas, as papoilas e a festa das Maias, na qual, durante muitos anos, eu fui a rainha. Era assim, esse Maio da minha infância, que as máquinas, as televisões, os computadores, pretendem riscar da memória e da tradição.

No primeiro domingo de Maio, montava-se o trono da Maia: uma cadeira alta, sobre esta, outra cadeira de fundo de buinho, mais pequena. Nessa cadeirinha-trono, sentava-me eu, na encruzilhada onde havia mais gente de ir e vir. Então, a senhora Custódia, que me ajudou a nascer e sempre me tratou como se eu fosse de louça ou qualquer coisa assim, frágil e quebradiça, vinha vestir a Maia.

— Lá está esta mulher a estragar-me a miúda com vaidades! — ralhava minha mãe.

— Enquanto eu for viva, a minha menina há-de ser sempre a rainha, podem ter eles a certeza.

Eles eram os miúdos de pé descalço para quem tudo servia de festa; eram os filhos dos abastados lavradores, donos da terra e de todos os aborrecimentos, que não brincavam nem deixavam brincar; passavam rasteiras, atiravam pedras das varandas altas onde se escondiam, defendidos por portões de ferro e cães de raça. Eles eram os dias que a senhora Custódia gastou lavando roupa na ribeira no Verão e nos dias gelados de Inverno, passando fome, envelhecendo, sem a ternura de ninguém. Eles eram o marido que foi para França e não voltou; o filho que morreu soterrado num desabamento das minas de Aljustrel, deixando-a sozinha com seus cansaços e seus fantasmas. Eles eram a vida terrível, sem espaço para nada que não fosse o trabalho de manhã à noite, a raiva de nada poder, nem entender. Por isso, transformar alguém que ela ajudara a vir ao mundo num mito, num símbolo de flores e sol, mesmo que transitório como a Maia que eu era, bastava-lhe para se sentir com um resto de coragem, uma centelha de esperança. E, assim, no cimo daquela cadeira alta, todos os anos, por este tempo, o ritual renascia.

Primeiro a saia: um lençol branco que se prendia à minha cintura, tapava a cadeira e caía até ao chão. Depois, uma blusa de folhos e rendas brancas. Os colares e as pulseiras eram muitos e todos feitos de malmequeres brancos, com um enorme olho amarelo, alternados com papoilas. Em seguida, bordava-se a saia. «Bordar» era coser molhinhos de flores naturais que recolhia nos quintais da vizinhança. Fazia isto e picava os dedos e barafustava com a falta de vista, a falta de dinheiro para ir a um médico e comprar uns óculos.

Acendia o fogareiro e nele ia aquecendo os cabos dos garfos de ferro. Quando os considerava na temperatura desejada, passava-os num pano molhado. O ferro chiava e dele saía muito fumo. A seguir, iniciava-se a mais espantosa das sessões de cabeleireiro: a senhora Custódia enrolava-me os cabelos naqueles ferros quentes para que ficassem em «cachos de caracóis», como ela dizia. De vez em quando, o garfo quente tocava-me na pele da cara ou do pescoço, eu gritava, a minha mãe, que assistia àquele cerimonial sem dele compartilhar, porque, nesses dias, eu era pertença exclusiva da senhora Custódia, com direitos adquiridos pelas muitas fraldas que me lavara, protestava discretamente:

— Deixe-a, senhora! Ainda acaba por queimá-la a sério. Não vê que ela já nasceu com os cabelos encaracolados? Já chega.

— Não chega nada! Assim é que tem de ser para ficar uma Maia a preceito.

Mais daqui, mais dali, e eu farta de estar sentada na cadeirinha pequena que estava sobre a cadeira grande e sempre à espera de cair – catrapuz! – lá se vai a Maia e o vestido e o penteado. E só daí a uma eternidade vinha, finalmente, a grinalda. Nos meus cabelos aos caracóis, a cheirarem a alecrim e açúcar, sim, porque me esqueci de contar que, antes dos garfos quentes, toda a minha sempre lavadíssima cabeleira era encharcada num chá de folhas de alecrim, muito bem adoçado com açúcar para a «permanente» durar mais. Nascia então a coroa de flores.

Acho que não sei nenhuma palavra para descrever essa coroa: era como se fosse feita de pétalas e sol. Tinha todo o perfume do Maio, maduro Maio que, anos depois, o Zeca havia de resumir em poema de forma inesquecível, tinha a textura ondulante das searas do pão e alegria para todos.

— Agora só falta o ramo!

E olhava para mim como se quisesse guardar-me para sempre no seu enlevo.

O ramo é como um ceptro, feito de papoilas, espigas de trigo e maios azuis, essas pequenas e perfumadas flores que só neste mês abrem nos campos do Alentejo e sem as quais um ramo de Maia não teria sentido.

Pego no ramo. Olho-o, comovida.

Pouso as mãos no colo, devagar, como duas aves.

— A minha menina é ou não a mais linda das Maias?

Maria Rosa Colaço
Ela Ainda Mora Aqui?
Lisboa, Editorial Escritor, 1998

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