Descobrindo o tesouro


O
grande continente azul

Eu sou a água do mar,

a água de todos os mares,

a água azul, verde ou cinzenta

que liga os continentes,

as ilhas, as línguas de terra

onde o trigo cresce,

onde os pássaros fazem ninho,

onde as cidades despertam,

onde as mãos amassam o pão,

onde as plantas e as pedras

se casam em manhãs de sol

quando chega a Primavera.


Por cima da minha cabeça

está o céu e quem diz o céu

diz a noite e o dia,

diz a manhã e a tarde,

o lençol de nuvens

que guarda a chuva,

o vento e a geada.


Sou habitada pelos peixes,

que são os meus melhores amigos,

os pequenos cavaleiros das ondas

que viajam comigo

até às praias, até às baías,

e voltam comigo para o fundo,

enfeitados de algas e corais.


Gosto dos peixes

e eles gostam de mim

como só os peixes sabem gostar,

batendo as pequenas barbatanas

quando estão contentes,

quando querem que se saiba

que estão felizes.


Eu sou a água do mar,

a água de todos os mares,

dos oceanos imensos

ou dos pequenos mares quietos

onde o sal é tanto

que faz arder os olhos

só de olharmos para eles.


Tenho alimento bastante

para dar de comer

a todos os meus filhos

e também aos filhos da terra,

às bocas que pedem mais pão.


Habita em mim a riqueza:

o ouro, o petróleo, o carvão.


Por isso me cobiçam,

me furam o corpo

à procura de novas riquezas.


Não quero para mim

aquilo que as minhas águas

escondem e protegem.


Mas só darei ao homem

aquilo que o homem

souber usar, trabalhar, melhorar.

Não quero o ouro

para me adornar,

o petróleo para me mover,

o carvão para me aquecer.


A minha riqueza é de todos,

mas é preciso que saibam

merecê-la, aumentá-la, amá-la.


Há quem me chame

grande continente azul

e eu gosto deste nome,

porque é bonito

e porque gosto do azul

que é a minha cor preferida.


Azul de água e de vento

de brisa e de espuma;

azul do céu de Junho

reflectido nas escamas de prata

dos peixes voadores.


Gosto de ser continente,

mas continente de água,

o maior de todos,

o mais fundo e secreto.


Gosto das estrelas do mar,

dos búzios e das conchas

e tenho uma guarda

de cavalos marinhos

que me acompanha

para onde quer que eu vá.


É no meu rosto de água

que as estrelas e os astros

se vêem ao espelho,

se miram e embelezam.


É no meu rosto de espuma

que as crianças constroem

castelos de sonho e areia.


E como eu gosto das crianças!


Queria ser um grande,

um enorme jardim verde

para elas poderem brincar

abrigadas de todas as tempestades.


Se às vezes me zango

e me torno temporal,

acreditem que não é por mal.


É só porque não gosto

que me sujem as águas

com óleo de navios,

que me estraguem o sono

com ruídos de motores,

que me manchem o azul

com lixo e nafta.


Sou irmã dos ventos,

dos astros e das estações,

das quatro estações que o ano tem,

dos doze meses

em que elas se repartem.


E digo: o que é meu

também é vosso.


Se estiverem comigo

estarei convosco: com os pescadores,

com os navegadores solitários,

com os astros e as auroras boreais.


Eu sou a água do mar,

a água de todos os mares,

de todos os oceanos,

do Atlântico, do Índico, do Pacífico.


Sou casa, celeiro, refúgio.


Todos os dias aprendo novas coisas

que vale a pena aprender:

nomes de plantas, de rios, de cidades.


Quero ter a cor do sonho,

o cheiro da maresia

e do peixe fresco.


É em mim que começa o azul

e também a viagem do sol

à superfície das águas.

José Jorge Letria
O Grande Continente Azul
Mafra, Livros Horizonte, 1985

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