Presença/Ausência


Rachid, o menino da televisão


Rachid é um menino de cabelos negros encaracolados e olhos claros. Uns olhos enormes, luminosos e travessos.

Quando chega a casa, vindo da escola, atira com a pasta para um canto e liga a televisão. Lancha diante do pequeno ecrã. Não tira os olhos das imagens, mesmo quando entorna a chávena de chocolate quente. A mãe chama-o repetidas vezes, mas Rachid nem lhe responde.

Não a ouve. É como se nem estivesse ali. As imagens fascinam-no, enfeitiçam-no, puxam-no para dentro da televisão. Já não obedece ao pai nem à irmã mais velha. Estão todos cansados de o chamar à razão. Danièle, a sua professora, podia impedi-lo de ver televisão, mas não mora com ele. Rachid tem receio dela, porque Danièle é bonita.

Está apaixonado por ela. Quando fala da professora, cora e gagueja. Diz: “A Danièle tem olhos azuis e eu gosto de olhos azuis.” Na realidade, a professora tem olhos verdes. Só que, para ele, são azuis e sonha muito com eles. Os pais de Rachid sabem que só ela pode rivalizar com a televisão. Um dia, o menino ficou doente e Danièle veio visitá-lo. Trouxe-lhe um livro, Os Contos de Goha. Mal a viu entrar, Rachid apagou a televisão e olhou-a com os olhos de um apaixonado. Nem sequer abriu o livro.

Ainda bem que Rachid é inteligente. Pode fazer os deveres enquanto assiste a um episódio de uma série americana, ou enquanto joga O Jogo Louco. Mas, às vezes, confunde as perguntas do jogo e as da professora, a voz do animador e os apelos constantes da mãe.

Então, tudo se mistura na sua cabeça e perde o sono.

Um dia, dá-se uma catástrofe! O televisor avaria! Triste e infeliz, Rachid anda às voltas no apartamento. Tenta reparar o aparelho, mas em vão. Pede à mãe para ir a casa dos vizinhos ver televisão, mas os vizinhos estão fora. Põe os auscultadores do seu walkman e fecha os olhos, mas não consegue ver nada. Não quer abrir a pasta nem beber o chocolate quente. Está de mau humor e trata mal a irmã. Quando o pai chega a casa, Rachid parte um prato. É castigado e vai para o quarto sem jantar. Chora e amaldiçoa este tipo de técnica que lhe prega partidas de mau gosto. “Que vai ser de mim sem televisão?”pergunta-se. “Vou tornar-me num sem-abrigo, num vagabundo. Já não tenho imagens para me sustentar! Que raio de aparelho é este que já não funciona? Vou escrever para os jornais, para que as pessoas não comprem mais esta marca…” Nessa noite, tem um pesadelo: imagens de todas as cores invadem o quarto e rasgam-lhe os livros e os cadernos. Saem de um televisor desligado, atravessam as paredes, as janelas, até mesmo o pequeno corpo de Rachid, que se encontra encostado a um canto da cama, cheio de medo e a tremer. Deitam os objectos ao chão, derrubam o candeeiro da mesinha de cabeceira e partem a moldura com a fotografia de Rachid e de Danièle. O menino carrega no comando com todas as forças, mas as imagens não param: nem o barulho que fazem, nem a desordem que provocam. Alertado pelos seus gritos, o pai vem ver o que se passa. O filho está lavado em lágrimas e encharcado em suor. O pai toma-o nos braços e promete-lhe uma viagem a Marrocos, nas férias da Páscoa. Em breve, o televisor é reparado e Rachid retoma os seus hábitos antigos.

— As imagens não passam de imagens — diz-lhe o pai. — Que me dizes a tentarmos descobrir, por detrás dessas imagens, paisagens maravilhosas, montanhas extraordinárias, florestas imensas, árvores mais altas do que o nosso prédio, planícies infinitas, animais selvagens e um céu azul de dia e estrelado à noite…?

— Não, papá. Posso ver tudo isso na televisão, a cores, em grande plano e com música. Na montanha, não há música.

— Há o canto dos pássaros, o sussurro das árvores, os gritos das crianças a brincar, o soprar do vento. Sobretudo há silêncio, pode-se ouvir o silêncio…

— Não preciso de ir tão longe. Tenho tudo isso na televisão. Quando não gosto do que estou a ver, mudo de canal. A montanha está sempre lá, não podes mudá-la de lugar. Estou bem aqui. Não preciso de me mexer. Não preciso de me separar dos meus amigos. Também não tenho vontade de faltar ao concurso de patins. Aqui não tenho frio, nem preciso de comer com as mãos. Não me apetece escutar o silêncio. Não me apetece ir a Marrocos.

— Mas, em Marrocos, estaremos em férias.

— Eu sei que na montanha não há televisão. Disseste-mo. O avô nem sequer tem electricidade.

— Na montanha, não precisamos de televisão. É maravilhoso: temos a realidade em vez das imagens.

— O avô nem sequer fala francês.

— Fala alguma coisa, assim como tu percebes um pouco de árabe. Vais ver que se vão entender lindamente.

— Não, não quero deixar a televisão. Vão passar a Missão Impossível.

— Quando lá estiveres, vais esquecer a televisão.

— Não, papá, nem pensar.

No dia seguinte, o pai traz-lhe um bonito livro sobre as montanhas de Marrocos. Rachid mal olha para o livro.

— Não presta para nada! — diz ao pai.

O pai sente que também ele não presta. Sente-se triste e incapaz de convencer o filho de oito anos a acompanhá-lo à sua aldeia natal. A televisão rouba-lhe o filho. Parti-la não serviria de nada.

A criança está enfeitiçada e os pais sentem-se infelizes. Decidem ir falar com a professora.

— O Rachid passa todo o tempo em frente da televisão. Tentámos tudo para o afastar, mas em vão. A minha mulher e eu tivemos a ideia de o mandar para Marrocos, para casa do avô, nas férias da Páscoa. Pelo menos, lá não há televisão. O avô dele é um contador de histórias nato. Conhece a natureza, as estrelas, os vulcões, as montanhas, os animais… Ajude-nos a convencê-lo a ir a Marrocos. Se o convencer, ele vai…

Antes de partir, o pai oferece a Danièle um livro sobre as montanhas de Marrocos.

Alguns dias mais tarde, enquanto trocava de canal freneticamente, Rachid perguntou ao pai:

— Papá, é verdade que o avô tem um telescópio?

Apanhado de surpresa, o pai respondeu:

— Claro, usa-o para observar as estrelas.

— Papá, é verdade que na escola corânica não é preciso fazer deveres?

— Sim, é verdade. Passas todo o tempo a ler o Corão, o livro sagrado dos Muçulmanos. Só isso.

— Papá, é verdade que em Marrocos o céu está sempre azul?

— Sim, embora os camponeses gostem que chova de vez em quando porque temem as secas. Uma terra sem água pode morrer.

— Papá, é verdade que o céu de Marrocos é o mais estrelado do mundo?

— O céu está quase sempre coberto de estrelas. Até se atropelam para velar sobre os sonhos dos pequenos Marroquinos…

— Papá, posso levar a tua malinha de couro, aquela que nunca me queres emprestar?

— Sim, filho, podes.

— Se me deixasses ver um pouco mais de televisão antes de partir… já que em Marrocos não vou poder ver…sentiria menos a falta dela…

Acordo firmado. Mas Rachid tem pena que o pai se recuse a comprar um videogravador para gravar os programas que não poderá ver. Diz aos colegas da escola que vai fazer uma expedição a África! “Ao norte de África, mais precisamente a Marrocos, o país onde as estrelas quase se atropelam para velar sobre os sonhos das crianças…”

Na Primavera, Marraquexe está um pouco mais ocre do que habitualmente. As montanhas conservam ainda alguma neve nos cumes. Os prados estão verdes, o ar é seco e as pessoas estão bem dispostas. Gostam de brincar, de contar histórias e de organizar festas. De entre todos os habitantes de Marrocos, os cidadãos de Marraquexe são os que têm mais sentido de humor. Vêem a vida pelo lado bom e são hospitaleiros.

Rachid o e o pai chegam ao aeroporto ao fim da manhã. Antes de apanharem a camioneta para irem para a aldeia do avô, vão à cidade comer num restaurante, situado em frente da praça Jamaa El Fna. É lá que se encontram os contadores de histórias, os saltimbancos e os encantadores de serpentes. Comem espetadas e bebem chá de menta.

Rachid reparou num pequeno televisor que transmite imagens de um homem cego a falar de religião. O homem tem um turbante branco, está sentado sobre esteiras numa mesquita e explica versículos do Corão. “Deus criou os homens todos iguais”, diz, erguendo os olhos para o alto, “apenas a fé os distingue; só a sua ligação à virtude e o respeito pela palavra de Deus estabelecem diferenças entre eles…”

Rachid fixa o ecrã, de boca aberta. Nunca viu este programa em lado algum. — No Islão — diz o pai — não há racismo. Todos os homens que acreditam em Deus são iguais.

Rachid replica:

— E os que não acreditam em Deus?

— Estão errados.

— E eu, acredito em Deus?

— Sim, Rachid. Deus é o universo, a bondade, o céu…

— Sim, acredito no céu coberto de estrelas…enfim, tenho de o ver.

— Vê-lo-ás esta noite.

Na camioneta, as pessoas atropelam-se e discutem por causa de um lugar para o qual foram vendidos dois bilhetes. Alguns passageiros intervêm e tudo acaba em gargalhada. Os olhos de Rachid estão esbugalhados. Registam tudo. É como se estivesse noutro mundo. A expedição a África acaba de começar!

Há camponeses que entram com galos e perus. Levam-nos de volta para a quinta, porque o mercado não é bom desde que deixou de chover. Um homem pega num pão redondo, corta-o em quatro partes e oferece uma delas a Rachid, que hesita. O pai estende a mão, pega no pão e agradece ao homem. — Nunca deves recusar um pedaço de pão ou um copo de água que te ofereçam. É uma tradição nossa.

Um passageiro põe um aparelho de rádio no máximo, para ouvir um relato de futebol. Fuma cigarro atrás de cigarro. Ninguém ousa dizer-lhe nada. Um homem diz ao pai de Rachid:

— Não ligues; é destrambelhado.

Quando chegam ao sopé da montanha, já Rachid dorme nos braços do pai. O avô espera-os, com um candeeiro a gás na mão. A noite está escura e sopra um vento ligeiro. Quando abre os olhos, Rachid aninha-se contra o avô, Jeddi. A casa tem um pátio quadrado descoberto. As paredes são feitas de adobe, uma mistura de terra batida, palha e hulha. Em frente à entrada, fica o estábulo onde dormem as vacas. Rachid passeia no pátio, espantado com o que vê. É a primeira vez que vê a casa do avô. Costumava ver Jeddi em Marraquexe, em casa do tio que tem uma loja de frutos secos, mesmo à entrada da medina.

Rachid não tem sono. Levanta a cabeça e conta as estrelas. Fica com vertigens. Resiste ao sono, apesar da fadiga e do esforço da mudança. Quer passar a primeira noite a contemplar o céu. À meia-noite, fecha os olhos e adormece, com a cabeça pousada nos joelhos de Jeddi.

No dia seguinte, o pai vai-se embora e deixa Rachid a brincar com os cães, os gatos, os coelhos e o burro.

— Vou tratar de problemas com o teu tio em Marraquexe. Venho buscar-te dentro de dez dias. Porta-te bem e ouve o teu avô.

— Não te preocupes, papá. Aqui não há televisão. Espero que ele me conte histórias.

À tarde, quando os animais se recolheram, Jeddi pega na mão de Rachid e leva-o para debaixo de uma grande árvore. Na realidade, a árvore é pequena.

— Dizemos que é grande, não pelo tamanho, mas pela idade e pela calma que nos incute — explica Jeddi. — É uma argânia. Dá um fruto semelhante às azeitonas pretas. As cabras comem-no, mas rejeitam os caroços. Estes são apanhados e postos a secar ao sol durante toda uma estação. Quando os esmagamos com a mó, dão um líquido negro, que, uma vez purificado, se transforma em azeite. Um azeite suculento e raro: o azeite de argânia. É melhor que o azeite da oliveira.

— Não gosto de azeite. Em França, usamos manteiga. Faz-se publicidade a um azeite leve, que não faz engordar. Na televisão, aconselham-nos a comer manteiga.

Rachid aprende a fazer pão com a avó. Assiste a toda a operação: chega mesmo a ver os pães a sair do forno, que está situado no meio do pátio. Depois, vai dar um passeio com o avô até à aldeia. Caminham por estradas cheias de pó. A praça da aldeia assemelha-se a uma cerca onde se guardam os animais. Há duas lojas que vendem de tudo: Coca-Cola, pastilha elástica, detergente, óleo de amendoim, pregos, foices, lâminas de barbear, candeeiros a petróleo ou a gás, ovos, farinha, aspirinas, cordas, enxadas, apanhadores, rodas de tractor, bidões de plástico, pão, cadernos de escola e até mesmo um pequeno televisor japonês a pilhas!

Jeddi pára diante da loja, que também vende café, e senta-se numa caixa. Rachid bebe uma Fanta com sofreguidão. As pessoas vêm cumprimentar Jeddi e beijar Rachid, a quem oferecem presentes: bombons, bebidas, dinheiro, um chapéu de palha, uma túnica de lã, favas grelhadas, azeitonas, tâmaras e figos secos.

Todos se conhecem e todos falam da mesma coisa: da falta de chuva. Estão persuadidos de que a chegada de Rachid lhes trará boa sorte e fará vir a chuva há tanto esperada. Diz um homem:

— Este menino veio anunciar-nos a chuva; vê-se pela cara dele; está calado, mas tudo indica que é portador de boas notícias.

No caminho de regresso a casa, Rachid farta-se de fazer perguntas ao avô. Reparou que a água é escassa, que não há água nas torneiras. É preciso ir buscá-la aos poços, filtrá-la e fervê-la antes de a beber.

Pelo caminho, repara que há mais mulheres do que homens a trabalhar nos campos.

— Esta noite, vou falar-te das estrelas — diz-lhe Jeddi.

Rachid adormece depois do almoço e tem um sonho muito bonito: vê a mãe, que está vestida como as mulheres dos campos. Dança e canta à chuva. Os homens misturam-se com as mulheres e dançam também para agradecer ao céu ter-lhes dado chuva e esperança.

Quando acorda, o céu está cheio de nuvens negras e todos esperam pela tempestade. Começam, então, a cair chuvas diluvianas sobre a região.

À noite, os vizinhos vêm ver o menino que lhes trouxe sorte. Colocam uma mão sobre a sua cabeça e aproximam os lábios para a beijar.

Nessa noite, Rachid tem vontade de estar em casa, com os pais e a irmã. Pensa na televisão, mas sente que já não lhe faz muita falta. Não percebe o que se está a passar com ele. Desfilam imagens pela sua cabeça. Imagens de séries e de filmes que costumava ver em França. Essas imagens misturam-se com as da aldeia. Lutam umas com as outras e Rachid faz de árbitro. Torce pelas imagens da aldeia: não são mais belas, mas são mais misteriosas.

No dia seguinte, depois do jantar, Jeddi pega na mão de Rachid e sentam-se num velho tapete, à entrada de casa. Diz ao neto:

— Ergue os olhos para o céu. Contempla-o sem pressa. Habitua o teu olhar à obscuridade. Vê a Lua em quarto crescente. Diz a ti mesmo que todos somos filhos do céu. Alguém disse que as nossas raízes estão nas estrelas. Isso significa que todos somos filhos e filhas do universo.

— Vejo muitas estrelas…

— Só podes vê-las bem, depois de os teus olhos se terem habituado à obscuridade.

— O que é uma estrela?

— É uma imensa bola de luz. A estrela que está mais próxima de nós, e que é também a mais conhecida, é o Sol. Ilumina o mundo e fornece-lhe calor.

— É o senhor do universo…

— É o nosso mestre e amigo. Mas gosta de nós de longe. Se se aproximar demasiado de nós, os seus raios queimam-nos. Impede as nuvens de se formarem e a terra fica sem água. Uma terra sem água é uma infelicidade para todos nós.

— É a seca…

— Na nossa região, a seca é sinónimo de infelicidade. De cada vez que ela surge, os camponeses abandonam as terras e vão mendigar para a cidade. Quem tiver água está salvo. É por isso que ter água é mais importante do que ter terra.

— E a Terra? Para onde vai a Terra?

— A Terra não é uma estrela, mas sim um planeta. Gira sem cessar à volta do Sol.

— O que procura a Terra?

— Faz o que fazem os outros planetas. Sabes, não somos os únicos a girar em torno do Sol. Ao todo, há sete planetas: Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Neptuno, Platão e a Terra. A Terra dá-nos o dia e a noite. A noite traz-nos os sonhos e os sonhos ajudam‑nos a viver.

— Jeddi, como sabes tudo isso?

— Quando tinha a tua idade, era pastor. Levantava-me antes do sol raiar e levava as vacas a pastar longe da aldeia. Tinha doze vacas à minha guarda. Só tinha por companhia um cão, Messaoud. Ia à procura de erva para os meus animais. Tal como os meus antepassados, contemplava o céu, para saber o que se ia passar na terra: se ia chover, se os ventos iam empurrar as nuvens na direcção certa. Habituei-me a consultar o céu para tudo. O meu pai dizia que cada ser humano tem uma estrela no céu. À noite, isolava-me e perscrutava o céu, em busca da minha estrela. À força de tanto o observar, aprendi bastantes coisas e o meu pai explicava-me outras. Conhecia o nome de muitas estrelas. Dizia-me que, para nós, Árabes, a Ursa Maior é como uma caravana no horizonte. Se a seguirmos, ela conduzir-nos-á à nossa estrela. Então, eu caminhava pelo céu durante horas, montado na Via Láctea, à procura da minha estrela.

— Como é a tua estrela? Como se chama?

— Dei-lhe o nome da minha primeira filha, Nejma, que morreu muito jovem. Sei que ela foi ter com a minha estrela. Instalou-se na sua luz e ficou coberta da sua pureza e da sua beleza.

— Podes mostrar-ma?

— Gostaria muito, mas os meus olhos já não vêem muito bem, e tenho dificuldade em distinguir os astros no céu. Mas tu podes encontrá-la quando fores à procura da tua própria estrela.

— Em Paris, o céu está sempre encoberto. O que hei-de fazer para encontrar a minha estrela? Como a reconhecerei?

— Reconhecê-la-ás sem esforço. Sentirás, com convicção, que se trata dela.

— Tenho de vir viver para a aldeia…

— Não forçosamente. Vens ver-me sempre que estejas em férias. No Verão, por exemplo…

— Este Verão, em França, vão passar um filme que todos os miúdos americanos já viram. Chama-se A nova guerra das estrelas. O herói chama-se Jeddi, como tu!

— É avô, como eu?

— Não, não é casado!

— Contas-me depois? Gostava que me contasses o que vês na televisão. De vez em quando, vamos à aldeia ver filmes egípcios. Sempre é uma mudança.

Rachid adormece nos joelhos do avô.

No dia seguinte, acompanha-o ao mercado. Partem numa mula. Há camponeses de terras vizinhas a venderem os seus produtos. Jeddi não vende nada, só mostra o mercado ao neto. As pessoas cumprimentam-no. Também há contadores de histórias, acrobatas, mágicos. Um homem vende flocos que custam muito dinheiro. É muito alto e está vestido de Super-Homem. Diz que a mãe o alimentou com estes flocos e que, por isso, se tornou um Super-Homem. Está calor e o homem transpira muito. As pessoas riem-se. Algumas compram os flocos e comem-nos mesmo ali. Mas logo mudam de cor e cospem fora o que comeram.

Todas as noites, avô e neto se sentam no mesmo tapete e observam o céu. Rachid está impaciente porque não consegue encontrar a sua estrela.

— Há milhares de estrelas. É impossível vê-las todas, mesmo com o auxílio de aparelhos. Sê paciente e passeia pelo rio celeste. Quando a tua estrela te vir, vem ter contigo e apresenta-se. Pode acontecer hoje, amanhã ou no próximo ano.

Nesse momento, uma cauda luminosa atravessou o céu a toda a velocidade. Rachid exclamou: — É ela! Corre como eu!

— O que viste é uma estrela cadente. Provém de poalha celeste. Está a fugir de alguma coisa, talvez do Sol. Não é a tua estrela.

Todas as noites, Rachid pensa ter visto a sua estrela. Quando o pai o vem buscar para voltarem para França, encontra o filho triste e insatisfeito.

Jeddi abraça o neto com força: — No Verão, o céu está mais limpo e as estrelas vêem-se com mais facilidade. Vais ter mais sorte. Estarei à tua espera.

Na viagem de regresso, Rachid conta ao pai tudo o que aprendeu. Na escola, oferece à professora uma pulseira de prata que a avó lhe deu. Só fala de Jeddi, das estrelas, dos planetas e de Marrocos. Em casa, diante da televisão, está distraído. Não que já não queira ver, mas sabe agora que há outras maravilhas, outras imagens. Basta levantar os olhos para o céu e interrogar as estrelas. Numa noite de Verão, sentado num tapete junto de Jeddi, acaba por encontrar a sua estrela.

As imagens do ecrã têm menos mistério do que uma pequena árvore chamada argânia, ou do que um mercado árabe cheio de camponeses, animais e Super-Homens falsos.

Mas Danièle continua a ter olhos azuis.

Tahar Ben Jelloun/Baudoin
Rachid, l’enfant de la télé
Paris, Éditions du Seuil, 1995

Texto Adaptado


Sem comentários: