Solidariedade


O cão, o general e os pássaros

Há muito, muito tempo que Napoleão, o imperador dos Franceses, quis conquistar toda a Rússia. Murat, o comandante dos exércitos, disse então aos soldados: — Força, meus valentes! Só mais um esforço e a grande cidade de Moscovo será vossa. Podereis comer, aquecer-vos e descansar! Em frente!

Só que, quando se lançaram, cheios de coragem, ao assalto de Moscovo, os soldados do imperador dos Franceses viram arremeter contra eles… pássaros com as asas em chamas! Estes pássaros em pânico tentavam voltar aos ninhos. Mas, ao sobrevoar as pequenas isbás e os grandes palácios, acabaram por pegar fogo à cidade inteira! É preciso dizer que, nesse tempo, a maioria dos edifícios de Moscovo era de madeira e que as chamas se propagaram de casa a casa em muito pouco tempo!

Incapazes de atravessar essa barreira de fogo, as tropas do imperador dos Franceses tiveram de bater em retirada, debaixo do frio, do vento e da neve. Foi a desolação total, a debandada geral! No mesmo instante, do lado russo soaram gritos de alegria: — Urra! Urra! Vitória! Ganhámos!

Os soldados russos rodeavam o general jovem e elegante que tivera a ideia de atear este incêndio contra o inimigo, utilizando pássaros de asas de fogo.

General, sois um herói! aplaudiam os homens. E o general sentia-se muito orgulhoso de si próprio.

Mas, de repente, uma criança de olhos claros que parecia saída de um sonho, ou antes, de um pesadelo, surgiu no campo de batalha e disse ao fogoso general:

Para salvares a Rússia, sacrificaste os pássaros. Arrepender-te-ás em breve!

Meu general, meu general, acalme-se, não passa de um sonho mau.

O general esbugalha os olhos. À luz de uma vela, distingue Mikhael, o seu fiel e corajoso ajudante de campo, que o acompanha desde aquela famosa batalha de Moscovo.

Era, mais uma vez, o pesadelo infernal que o nosso herói, hoje na reforma, respeitado e coberto de medalhas, continua a ter todas as noites.

No momento em que começa a nossa história, ele deixara o exército há 25 anos, precisamente no dia 13 de Setembro de 1836. General? Continua a sê-lo. Mas não passa de um título. O tempo em que comandava tropas já acabou! E, agora, o general aborrece-se de morte.

Ah! Se ao menos ainda estivesses por cá, minha bela Larissa murmura diante do retrato de uma jovem muito bela, no seu apartamento de São Petersburgo. O general escolheu instalar-se nesta bela e grande cidade imperial para aí usufruir da sua reforma.

Mas nem a beleza da cidade, atravessada por um rio magnífico, o Neva, o conforta. É que a sua esposa, Larissa, morreu há muito tempo. O general nunca mais se recompôs e nunca quis voltar a casar. Por isso fala com o retrato como se falasse com a sua amada. Fala-lhe dos seus problemas, grandes e pequenos, pede-lhe conselhos.

Sabes, Larissa, os pássaros não me perdoam. E depois, tudo me aborrece. De que é que ainda gosto? De nada… Ah, é verdade, de chocolate…

Na verdade, o que também entristece o general é que não pode dar um passo fora de casa sem que uma nuvem de pássaros venha sobrevoá-lo e bombardeá-lo… com caganitas. Já tentou de tudo: dar-lhes grãos para bicar, arranjar-lhes as melhores migalhas… Nada resulta. Por isso, não pode sair sem o guarda-chuva. Nunca. Porque, mal isso acontece, os pássaros chegam em voo rápido e bombardeiam-no… No entanto, tal não o impede de dar o seu passeio quotidiano. Mas, ele, que tanto gostaria de olhar para o céu e seguir o curso das nuvens e as suas batalhas incessantes, é sempre obrigado a sair protegido por um guarda-chuva.

Um dia, quando chega do passeio, vê um ajuntamento na rua. — Que confusão é esta? pergunta-se… No meio das pessoas, vê um cão, um cãozinho estendido no passeio.

Mamã, porque é que ele não come? pergunta uma menina. Porque está triste responde a mãe. Porque é que o cão ‘tá triste? — pergunta um miúdo. Está triste porque o dono morreu diz um senhor. Nessa altura, o general aproxima-se do cão e diz‑lhe: Sabes, cãozinho, vê-se logo que és um bom cão. Não tens nada ar de palerma. Precisas de comer para ganhar forças e tens de me obedecer porque eu sou general. Então, agora come!

E o general, todo orgulhoso por ter dito ao cão para cumprir as suas ordens, regressa a casa tranquilamente, mas, no momento em que entra no prédio, apercebe-se… de que o cão o seguiu! E nem tem tempo para fechar a porta: o cão já está lá dentro. — Mikhael, Mikhael! Manda sair este cão, que me segue por todo o lado. Não consigo livrar-me dele ordena o general. E Mikhael, o seu fiel servidor, obedece.

Anda, mexe-te! Fora! grita ao cão. Mas o cão corre de um lado para o outro, de uma divisão para a outra, vai para debaixo da mesa… não tem vontade nenhuma de deixar o apartamento. Por fim, é o general quem terá a última palavra. Leva o cão que parece cola a uma casa vizinha e fecha-o atrás de um portão.

Tem a certeza de se ter desembaraçado do cão. Mas quem é que encontra mais tarde na catedral da cidade? Esse mesmo cão. — Então, ainda andas por aqui? Estou a ver quem és com esses olhos de manteiga e pêlo cinzento. Estás numa igreja e aqui não é lugar para um cão. As pessoas vêm cá para se recolher e…

Nem tem tempo de terminar a frase porque é interrompido por um padre: — O seu cão não pode ficar aqui. Os cães não podem entrar nas igrejas.

Mas o cão não é meu. Ele é que me segue por todo o lado. Nem sei porque é que me escolheu desculpa-se o general.

Mas ele parece saber sorri o padre.

Então, o general, que gosta muito de cães e que acha aquele divertido, decide que ele merece que lhe arranjem um bom dono.

Mikhael, Mikhael, prepara o trenó! ordena ao fiel servidor.

E ei-los que partem para o campo. O trenó desliza na neve, a toda a velocidade. Apenas se ouve o barulho das sinetas no grande silêncio branco. O cão salta alegremente ao lado do trenó.

Por fim, chegam a uma bela aldeia distante, onde é dia de feira. O general pára diante de um comerciante de vassouras, que parece ter bom aspecto. — Diga-me, senhor, não gostaria de se ocupar deste cão que é muito gentil, mas que me estorva um pouco? Pago-lhe o sustento dele adiantado — insiste o general. O comerciante aceita a oferta e afasta-se, com o cão debaixo do braço.

E pronto! O general e Mikhael podem voltar para São Petersburgo de consciência tranquila. Já não têm de se preocupar mais com o cão!

Mas, algum tempo depois do regresso, o general encontra-se diante do seu grande inimigo: o tédio. Ah! Como se aborrece o general! Acabou-se a pequena aventura.

Para se consolar, vai falar com o retrato da mulher. Fala-lhe também deste cão engraçado com olhos de manteiga num pêlo todo cinzento, de que sente agora um pouco a falta.

O quê? O que estás a dizer? Mais uma vez tens razão, Larissa.

No fundo, este cão era divertido. Podia ter-lhe feito companhia e ajudado a esquecer o tédio… Mikhael, que observa o general, bem vê como ele se aborrece, e muito. E Mikhael fica aborrecido por ver o general aborrecido.

Então, o general diz-lhe: — Anda, Mikhael. Vamos buscar o cão à aldeia! Voltemos lá a toda a pressa.

E as sinetas do trenó soam de novo no grande silêncio branco.

Chegam finalmente à aldeia onde tinham dado o cão. O comerciante de vassouras lá está, no mesmo lugar, mas não há nenhum cão a seu lado… — Mas o que fez com o cão?

Olhe, fugiu, não sei onde está! respondeu o comerciante.

Então, o general tenta, de todas as formas, saber onde terá ido o cão: interroga os aldeões, estes sugerem-lhe mesmo subir ao campanário, o lugar mais alto da aldeia. Chegado ao cimo, tira o seu óculo de longo alcance, mas nada no horizonte!

Desapontado, o general volta para casa, em São Petersburgo. E sonha. Sonha com o cão, com tudo o que poderiam ter feito em conjunto, como dois amigos. Imagina bons passeios tanto na cidade como no campo. De um momento para o outro, um breve latido tira-o dos seus sonhos. Será que é verdade? Mas claro: ouviu uivar! Não é um sonho! O cão está ali, à entrada do prédio, todo contente. Abana a cauda e late com prazer: «Au! Au!» Alegre por demais, o general fá-lo subir imediatamente e instala-o no quarto, num belo tapete, aos pés da cama.

Mas trata de me obedecer, ouviste? Não te esqueças que sou general. Espero que não ronques! — diz ao cão de olhar de manteiga e pêlo cinzento. E olha, já que estou a adoptar-te, vou pôr-te um nome. Vais chamar-te Bonaparte, como Napoleão. Mas tenho de te explicar quem ele era.

E eis que o general mergulha nas suas recordações e conta ao cão como teve a ideia – ele que não passava de um jovem general – de erguer uma barreira de fogo diante do inimigo, impedindo-o de penetrar na grande cidade de Moscovo.

E, ao mesmo tempo, confidencia-lhe o motivo por que todos os pássaros vêm, diariamente, bombardeá-lo com caganitas, esteja ele onde estiver, e vingar assim os antepassados sacrificados. — Sinto orgulho por ter repelido o inimigo. E se tivesse de voltar a fazê-lo, fá-lo-ia. Contudo, esta batalha e estes pássaros vêm atormentar-me todas as noites.

Mas será que compreendeste, Bonaparte? Responde-me. Ah, é verdade, primeiro tenho de te ensinar a falar. Comecemos pelo “sim”. Para dizer sim, bates com a pata. Anda lá, bate com a patita. Ah, já estás a fazê-lo. Claro, já percebeste tudo. És cão de general e sabe-lo bem!

E para dizer não? É igualmente simples, abanas a cauda. Muito bem, é assim mesmo. Muito bem. Como percebeste bem, mereces um bolinho.

Oh! Estas emoções todas deixaram-me esgotado. Anda, vamos dormir, sonhar talvez.

E precisamente, pela primeira vez desde há muito tempo, o general adormece tranquilamente sem ter aquele pesadelo da batalha com os pássaros de fogo. Sonha. Sonha que está a voar como um pássaro. Por cima da cidade, com o cão. E o general adormecido sorri ao sobrevoar a bela São Petersburgo, os seus palácios magníficos com cúpulas de ouro…

Também o cão tem um sonho esquisito. Sonha que Mikhael lhe apresenta pratos maravilhosos, e que depois joga xadrez com o general, fumando cachimbo…

De manhã, finalmente liberto do seu pesadelo, o general precipita-se para o quadro de Larissa para lhe contar. Mas, o que faz ela? Diz-lhe que é preciso abrir as gaiolas aos pássaros.

Ah! Larissa, como és maravilhosa. Que boa ideia!

O general e Bonaparte partem imediatamente em direcção ao mercado de pássaros.

O general não hesita: abre várias gaiolas de pássaros que logo saem a voar. O vendedor de pássaros está furioso! — Mas o general não está bom da cabeça. Ficou maluco? O que lhe deu para abrir as gaiolas? Estes pássaros custaram-me muito dinheiro!

O general paga imediatamente ao vendedor, que se acalma. No entanto, compreendeu que é preciso encontrar outra solução para libertar todos os pássaros engaiolados.

Enquanto continuam o seu passeio, o general confessa a Bonaparte:

Sonhei que, para libertar os pássaros, todos os cães se juntavam no rio gelado. Claro que é muito arriscado porque o degelo já começou. Mas isto é uma batalha, é preciso correr riscos para ganhar e fazer alguma coisa pelos outros. Mas quem poderia explicar tudo isso aos cães? Foi um sonho bem engraçado…

E eis que, de repente, Bonaparte foge e se põe a uivar de uma forma muito particular. «Au! Au! Au!», desafia ele, com toda a força, os companheiros cães de São Petersburgo e arredores.

E todos os cães, dos mais pequenos aos maiores, dos caniches aos cães de guarda enormes, dos pequeninos chihuahuas aos dálmatas, acorrem à chamada e juntam-se no Neva gelado. Mesmo os grandes galgos do emir de Boukhara deixam o seu magnífico palácio para se juntar à manifestação dos cães.

Bonaparte explica aos seus congéneres o que vão fazer: todos juntos, unindo esforços, poderão conseguir a libertação dos pássaros. Durante este tempo, o general, discretamente, aproveita a noite para pintar nas paredes da cidade a seguinte mensagem: Os cães exigem a libertação dos pássaros.

De manhã cedo, toda a cidade de São Petersburgo está em efervescência. Nenhum dono consegue encontrar o seu cão! Desapareceram todos. Ou seja, estão todos juntos sobre o rio gelado, enroscados uns nos outros para se manterem quentes… Também nas margens há um ajuntamento, mas de pessoas. Desta vez, o general não pergunta o que se passa. Sabe bem a razão de tudo isto!

Os donos dos cães estão muito perturbados e tentam que os seus companheiros voltem para junto deles, chamando-os a partir das margens do rio. Descobrem também grafittis nas paredes: «Os cães exigem a libertação dos pássaros.»

Como? Os cães juntam-se para protestar? E nada disto tem a ver com eles próprios? Não lutam para obter melhores pâtés ou donos mais obedientes, mas apenas por solidariedade com uma outra espécie de animais? Para dar a liberdade aos pássaros? Não dá mesmo para entender! Mas eis que alguns donos parecem ter compreendido a determinação dos seus cães em não sair dali. Decidem então trazer-lhes de comer.

Diana, Diana, onde estás, minha linda? Sabes bem que sem os teus olhos não sou nada, pobre de mim que sou cego. Sem ti, cada coisa é um obstáculo. Já não sei onde vou, vou de encontro a tudo. Suplico-te, Diana, volta!

Começa então uma pequena discussão entre os cães, sob a direcção de Bonaparte. E os cães autorizam Diana a voltar para ajudar o seu dono, um pobre cego. Bonaparte – que já tinha reparado na beleza de Diana – aproxima-se dela para a acompanhar até ao dono.

Mas, de repente, a multidão agita-se ao fundo do cais. O emir, o grande emir de Boukhara avança lenta e magnificamente, no seu elefante todo cor-de-rosa e enfeitado com pedras preciosas. — O emir, o grande emir chega no seu elefante! repete a multidão. É que também o emir gostaria de reaver os seus cães, uns grandes e magníficos galgos. Desce do elefante e dirige-se para o rio enquanto os serviçais desenrolam um valioso tapete para que os seus pés não pisem o chão gelado. Chama os galgos e põe-lhes os pratos preferidos. Mas de nada serve: apesar das suas ordens, apesar das suas orações, os magníficos galgos permanecem com os outros cães, sem se mexerem, no rio gelado.

De repente, num grande deslize, como que para acabar em beleza o seu voo nas nuvens, um belíssimo cisne branco aterra no Neva, mesmo ao lado dos cães.

Olhem, olhem! Um cisne pousou no rio diz um homem no meio da multidão. Quando estes grandes pássaros voltam, anunciam o regresso da Primavera.

Então, o Neva vai perder este fato de gelo? — interroga-se um outro.

Vai estalar tudo.

Os nossos cães vão afogar-se na água gelada. É terrível! diz uma senhora quase a chorar.

E, de um momento para o outro, ouvem-se os primeiros estalidos do gelo. Alguns cães têm medo, mas não o mostram. Permanecem bem juntos, corajosos.

Mas, afinal, já se viu alguma vez os cães preocuparem‑se em abrir as gaiolas aos pássaros? E o que vai acontecer a estes pobres cães? Só o czar pode fazer algo por eles. Só ele os pode salvar — diz outro dono, inquieto.

Parece que o czar está de regresso. Era preciso falar-lhe dos cães lança alguém da multidão.

Bonaparte, tu que és tão despachado, vai depressa! diz o general ao cão que acaba de chegar à margem. Infiltra-te no palácio do czar e vem dizer-me se é verdade que ele voltou. Se assim for, terei de ser vosso intérprete e embaixador e pedir uma audiência a Sua Majestade.

Bonaparte obedece de imediato. Avança para o palácio e sobe discretamente os degraus da grande escadaria. Compreende que o czar já voltou. Pelo menos, é o que ouve da boca dos oficiais que discutem no vestíbulo. E volta para apresentar o seu relatório ao general.

Então, o general pede a Mikhael que lhe prepare o seu mais belo fato, que limpe e ponha a brilhar todas as suas medalhas militares, e apresenta-se no palácio para ver o czar, o imperador de todas as Rússias.

— Ah! Sois vós, General! O meu pai contou-me os vossos feitos passados para proteger o nosso império. Mas, porque me pedis uma audiência, logo hoje, com toda esta agitação? Sabeis o que se passa entre cães e pássaros em São Petersburgo? Não se percebe nada!

Com efeito, é precisamente por isso que venho ver-vos, Majestade. Suplico ao czar, ao imperador de todas as Rússias, que escute atentamente o pedido dos cães. Antes de mais, é bem raro um combate assim pela liberdade de outrem. E depois, sabeis como os vossos súbditos são chegados aos seus cães, estes cães que estão agora ameaçados pelo degelo do rio. Se se afogarem, muitos donos sofrerão e culpar-vos-ão por nada ter sido feito. Acedei pois ao pedido dos cães, mesmo se é um pedido fora do comum. É bem simples para vós, que sois o czar.

Tendes razão e penso, general, que é a mais nobre de todas as vossas batalhas. Voltai para casa sossegado.

De imediato, por decreto do czar, é dada ordem em todos os bairros, em todos os cantões, tanto nas cidades como nas aldeias. É afixado um aviso em todas as paredes:

Ordena-se que se abram
as gaiolas de todos os pássaros.
É o que queremos, nós,
o Czar Alexandre II,
Imperador de todas as Rússias.

Assiste-se então a um espectáculo inacreditável: as pessoas abrem as gaiolas. Periquitos e papagaios, estorninhos e colibris, canários e pombas, todos os pássaros voam. Livres!

Vêem-se igualmente militares que vão de casa em casa, de loja em loja, transportando gaiolas, pequenas gaiolas em verga ou grandes gaiolas em ferro. Todas as gaiolas abertas são colocadas no meio do rio, para que os cães as vejam bem.

Até o palácio do czar, o palácio imperial, está em ebulição. Porque no palácio há dois magníficos pavões mecânicos, muito amados pelo czar. Pavões… de ouro! Põem-se a trabalhar com uma chave que faz «cri, cric, crac», como se faz com alguns relógios de sala ou brinquedos. Como todos os dias, o criado que tem por missão olhar pelos grandes pavões de ouro de Sua Majestade, vem dar-lhes corda. Mas, depois de lhes ter dado corda, os dois pavões de ouro do czar voam na direcção do horizonte, tocando o céu, majestosos, semelhantes a todos os outros pássaros.

No apartamento do general, Mikhael mostra pacientemente aos seus belos pássaros embalsamados como fazer para voar. — Pensas mesmo que eles vão voar, hein? sorri o general, troçando um pouco. Mas Mikhael tem a certeza: estes pássaros também vão partir. Seja como for, quando o general regressa, só resta uma pequenina pluma no parapeito da janela.

Mas não é tudo. Ao ver os pássaros escaparem, os cães dizem uns para os outros, em linguagem de cão, que os humanos não conseguem compreender: «Au! Au! Au!», que significa. Ganhámos! Já podemos juntar-nos aos nossos donos, pôr-nos ao quentinho com eles e fazer uma grande festa para celebrar a nossa vitória.

Todos os cães voltam para a margem. Já não era sem tempo! É que o gelo do Neva, que já tinha começado a estalar, estilhaça-se bruscamente em mil pedaços, num enorme estrondo. A água surge de novo, é o degelo. A Primavera voltou.

No mesmo instante, milhares de pássaros vêm sobrevoar a cidade, emitindo cantos e gritos de alegria. E é então que acontece o mais extraordinário: suave e lentamente começam a cair… flores! Caem sobre a cidade milhares de flores, que os pássaros trazem no bico. É a sua forma de agradecer, por terem encontrado de novo o prazer de se elevarem no ar, a felicidade de sentir o céu entre as asas, uma felicidade que tem por nome liberdade.

Então, diante deste tapete de flores, o general ousa fazer o que há muitos anos não fazia: sair à varanda com a cabeça descoberta! Acabou-se o guarda-chuva! Pode, finalmente, contemplar o céu e as nuvens pela primeira vez, desde há muito tempo.

Tal como os pássaros felizes que cruzam o horizonte, e como as pessoas felizes diante desta magia repentina de flores caídas do céu, o general está feliz, pura e simplesmente feliz. Apanha então algumas dessas flores mágicas. Com amor, junta-as num raminho muito bonito e vai oferecê-las a Larissa, a sua querida mulher. De repente, vê que ela desapareceu do retrato… e que está sentada no sofá!

Mas era só um sonho, um sonho feliz do general. E, em vez disso, Bonaparte estende-lhe a pata, todo contente por partilhar com ele esta felicidade reencontrada.

Tonino Guerra
Le chien, le général et les oiseaux

Paris, Seuil Jeunesse, 2003

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