Caminhos de Vida


Uma viagem no verde


Acordei com a palavra água

a dançar-me na boca. Tive sede, muita sede,

e fui beber. O dia, lá fora, estava azul

e tinha o tamanho de um rio

ou de uma cidade fantástica, e sorria.

O sorriso do dia é igual ao do sol.

É largo e branco. Tem dentro

os frutos doces da calma das manhãs,

e se for Verão são capazes de matar

a fome e a sede que têm os bichos,

que têm os homens, que têm as casas.

Visita-me agora um pássaro e diz-me: estou

doente do fumo e da pressa do voo.

Quero um ramo alto para fazer poiso

e só encontro telhados, antenas de televisão,

cidades com tosse, nuvens tristes, aviões

carrancudos nas estradas do céu.

É um pássaro bonito de asas largas

e penas cor de arco-íris. Gostava de ser

um pássaro assim, eu que também

não gosto do fumo nem da pressa do voo.

Fica poisado no meu dedo a falar-me

do mapa das coisas que tem na cabeça,

a cantar-me as cantigas de vento

que traz na ponta do bico, a dizer

que o Inverno é um sopro gelado

que magoa o sol e os ossos das casas

e enregela a casca das árvores

e as escamas brilhantes no dorso dos peixes.

Para mim o Inverno é não estar ninguém

em casa quando a gente volta

das terras quentes da beira do mar

com a boca a saber a morangos silvestres.

O pássaro sabe os segredos da sombra

das estátuas quietas nos jardins

mas não os conta a ninguém. Leva-os

guardados na bagagem do voo

e diz-me adeus lá de cima, empurrando

uma nuvem de fumo com a ponta da asa,

riscando o silêncio da noite

com a música que aprendeu a voar.

Como se chama? Que nome é que tem?

Vejo-o partir e nem lhe pergunto.

Há-de voltar quando for tempo, há-de voltar

na estação das ondas mansas trazendo notícias

dos bandos que cantam por cima do mar.

Depois de água, digo pedra

e na pedra vejo os nomes antigos

de reis e princesas, de magos e bruxas,

de cavaleiros andantes que andam cansados

das guerras já feitas, das por fazer,

das que moram nos livros da história,

das que deixam sinais na lembrança.

Andam tristes os bichos da terra

por verem crescer cidades sem sol

sobre as pedras esquecidas,

perdidas no tempo com tudo por contar.

«Vamos salvar o que resta das pedras!» —

dizem os bichos da terra, sentados

em círculo à volta do fogo, e eu oiço-os

falar e oiço-os sonhar e dou-lhes razão,

razão que sobra para os ajudar.

Depois da água e da pedra, digo fogo

e fico a tremer, não de frio, mas de medo,

com medo de ver a floresta ardida, a casa

queimada, o cereal em cinza, o pão

por fazer. Oiço sirenes, gritos na noite

e volto a tremer com medo do fogo, da chama

que chama mais fogo, mais fogo. Chega a água

e apaga o lume. Saltam da toca os bichos da terra

e fazem uma roda contentes, por verem

a seiva a correr, a floresta de novo

a cantar com árvores velhas, sábias e firmes

dançando belas canções de embalar.

Cai uma lágrima do rosto da lua

e é branca e limpa como um floco de neve.

Que dor a faz chorar? «Anda inquieto,

triste, zangado, e quem sofre é a paz!»

Na rima que faz, razão não lhe falta.

Entretém-se o poeta com esta lua redonda,

cansada de noites e noites no centro do céu

a servir de candeia contra a escuridão.

Que se guerreiem não gosta, faz-lhe doer

o seu rosto de lua, o círculo branco

das coisas que sente, das coisas que sabe.

Está lá em cima poisada há tanto, tanto

tempo que já se esqueceu da idade que tem,

dos nomes que teve nos livros antigos

dos povos que deram a forma do arado,

ao fogo, ao ferro e à roda. É mãe das marés

e gémea dos ventos, companheira das águas,

vizinha de sombras e dos vulcões. Anda agora

aflita por ver ferros em lugar de abraços.

E chora como só as luas sabem chorar:

lágrimas brancas como pérolas que chegam

à terra e se tornam crateras fundas

para guardarmos os sonhos melhores.

Apago a luz logo que a noite vem e fico a olhá-la,

triste por não poder tocar-lhe.

No rio que passa perto de mim

queixa-se, azul, um peixe pequeno. Diz:

é o óleo que mata cardumes, cavalos marinhos,

que suja os corais, as algas, as praias.

Falas iguais têm outros peixes, pequenos e grandes,

Azuis ou vermelhos. Sofrem a mesma dor:

uma dor de água turva, que faz arder

os olhos e deixa nas guelras

um gosto amargo que sabe a doença.

Tens razão, pequeno peixe azul

da profundeza do mar.

Vejo um barco à vela que leva crianças

brincando na proa e molhos de sonhos

tapados com panos de linho no meio do convés.

Sabe histórias do rio e do mar

e só tem pena do tempo que passou,

sentido por não poder navegar. Segue

a rota do peixe debaixo da onda,

e quando divide a espuma em metades iguais

parece um deus antigo, vindo de um continente

perdido no oceano das lendas.

Quero ir neste barco, mas não posso.

Só posso sonhar que vou. As viagens que faço

são sempre assim: sonhadas, sonhadas,

como se nunca mais acabassem,

como se nunca chegassem a começar.

Já disse água, azul, fogo e pedra.

Depois disse seiva, pássaro e lua.

Estas palavras são o meu alimento

e a minha memória. É com elas que vivo,

que moro e que brinco. O que sou é isto:

um duende-poeta, um gnomo-cantor

que sabe o tudo e o nada da vida das coisas

e se afunda nelas até perceber

o que são, o que querem, o que sofrem.

As palavras que digo dão corpo

às coisas que penso, e o que penso é

uma vontade grande de não ver morrer

a planta, o rio, a ave, a memória branca

que há dentro das pedras.

Tenho tão pouco, quase nada para dar:

só esta maneira de fazer poesia a falar.

Gosto dos bichos, das sementes, das pedras

raras que há nos abrigos da noite. Que mal

é que tem? Sou um duende-poeta, e as lembranças

que tenho não são de ontem, são de amanhã,

do tempo que as estrelas me dizem

que ainda está para chegar, que as aves

me contam que não pode tardar. E se às vezes

rimo a falar é por saber a música salgada

das ondas bravas do mar.

Não me podem apanhar, que eu sou tudo

aquilo que vejo e que amo: a floresta,

a duna, o rio, a maré, a seara de luz,

o galope do vento num areal feito de prata.

Sou irmão do homem quando o homem

é irmão daquilo que eu amo. Se não for,

nem tempo perco a estender-lhe a mão.

Como sou um duende-poeta, acordo

com sede de sol, de água e de espuma

e uma flor azul a bater imensa no coração.

José Jorge Letria
Uma Viagem no Verde
Lisboa, Vega, 1989

Texto Adaptado

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